fonte: O Globo

Toda vez que vai trabalhar num novo hospital, a psicóloga Mayze Machado dos Santos, de 58 anos, quer saber se o consultório onde vai atender fica no andar térreo. A pergunta não é mera curiosidade. A cena da fumaça invadindo o segundo andar do Hospital Municipal Pedro II, em Santa Cruz, durante um incêndio ocorrido em 14 de outubro de 2010, não sai de sua cabeça. Além das sequelas psicológicas, que ela conhece bem como profissional da área, Mayze não tem como esquecer as marcas físicas. Ao fugir das chamas pulando por uma janela, ela caiu de uma escada de uma altura de cerca de dez metros e quebrou o pé. Hoje, deficiente física, tem que dirigir um carro adaptado.

Depois de passar dois anos em reforma, o Pedro II foi reinaugurado, mas, em 23 de janeiro deste ano, pegou fogo novamente. Desta vez, o incêndio só não foi pior graças aos chuveiros automáticos (sprinklers) que haviam sido instalados. Mesmo assim, até hoje, a unidade não tem o certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros, que dá garantias de que o local está preparado para o risco de incêndio e pânico. A pedido do GLOBO, a corporação fez um levantamento para saber que hospitais públicos da capital estão certificados. Com exceção do Evandro Freire, na Ilha do Governador, da rede municipal, nenhum outro cumpre as exigências dos bombeiros. Por lei, deveriam estar interditados.

De acordo com a pesquisa, 28 dos 29 hospitais do município não têm o certificado. Em 2012 e 2013, chegaram a ser notificados e, em alguns casos, receberam multas, não pagas. A situação piora nas unidades da União e do estado. Segundo o Corpo de Bombeiros, os seis hospitais e três institutos federais, além das cinco unidades estaduais de referência no Rio não têm qualquer tipo de documento, nem autuações aplicadas pela corporação.

As 24 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) estaduais, não só na capital como em outros municípios do Rio, também funcionam sem o certificado.

Depois de o fogo ter consumido os edifícios Andraus e Joelma, em São Paulo, em fevereiro de 1972 e 1974, respectivamente, matando 375 pessoas, o Rio publicou o decreto-lei 897, de 21 de setembro de 1976, que dispõe sobre a segurança contra incêndio e pânico. A legislação diz que o Corpo de Bombeiros pode interditar o estabelecimento que não cumprir suas exigências. Antes disso, porém, a fiscalização faz uma notificação e, caso as determinações não sejam seguidas, aplicam-se dois autos de infração, de R$ 664,49 e R$ 1.328,98.

A engenheira civil e de segurança do trabalho Valéria Barbosa Gomes, professora da Uerj, explica que o certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros é essencial para o funcionamento de um hospital e, se a legislação fosse aplicada ao pé da letra, as unidades teriam que ser fechadas. Ela ressalta que o documento faz parte, inclusive, das exigências da prefeitura para a obtenção do habite-se.

— Não sei como a fiscalização tem sido feita pelos bombeiros, mas acho que ela é mais presente para empresas particulares e condomínios. A cobrança deveria ser maior. Sem dúvida, se houver mais exigência, os hospitais vão tentar se ajustar. Não há falta de dispositivos para fiscalização. Faltam ação e correção por parte dos bombeiros — disse a especialista.

RELATÓRIO APONTA FALTA DE PLANOS DE FUGA

Responsável por uma pesquisa sobre a resistência de materiais ao fogo, o engenheiro civil Alexandre Landesmann, da Coppe-UFRJ, ficou estarrecido com o número de hospitais sem o certificado dos bombeiros.

— Geralmente, as instalações elétricas são antigas e adaptadas. A situação é muito preocupante, uma vez que há pessoas com dificuldades de locomoção nos hospitais. Imagine um incêndio num hospital nos dias de hoje, com corredores repletos de macas obstruindo as saídas? Além disso, dentro das unidades há muito material inflamável. O que as autoridades estão fazendo para evitar que o fogo se alastre num hospital? Isso é de tirar o sono — lamentou Landesmann.

A preocupação do pesquisador é justificada. Um relatório da Diretoria Geral de Serviços Técnicos (DGST), do Corpo de Bombeiros, de outubro de 2012, ao qual O GLOBO teve acesso e feito após uma vistoria nos 29 hospitais municipais, cita vários problemas. Entre eles, estão falta de sprinklers, escadas sem enclausuramento à prova de fumaça (essencial para evitar que um pessoa, ao escapar de um incêndio, fique intoxicada) e inexistência de planos de escape. O documento diz ainda que, no Brasil, as maiores causas de incêndio “têm origem na precariedade e sobrecarga das instalações elétricas”.

Numa visita ao Hospital municipal Souza Aguiar, no Centro, repórteres do GLOBO constataram a falta de mangueiras de incêndio.

O perigo em hospitais do estado também é iminente. No Getúlio Vargas, na Penha, não é preciso ser especialista para ver que a parte elétrica está comprometida. De uma janela do segundo andar do prédio, é possível ver uma área interna descoberta, onde há aparelhos de ar-condicionado com fios remendados com fita isolante. O emaranhado lembra “gatos” de luz comuns em favelas. No mesmo lugar, há duas macas e uma cadeira abandonadas, além de camisolas sujas de sangue no chão. O local serve como vazadouro de lixo.

Pelos corredores do hospital, até a semana passada, havia vários extintores, mas todos com validade vencida em março deste ano. Enquanto isso, largados num canto do estacionamento descoberto, 36 cilindros novos estão amontoados.

Depois do susto com o incêndio no Pedro II, em 2010 — que na época fazia parte da rede estadual —, a psicóloga Mayze Machado passou a ficar mais atenta às saídas de emergência. Para escapar do fogo, ela tentou abrir uma porta que estava trancada com cadeados.

— Foi horrível ver o hospital pegando fogo e nós ali, confinados. Ninguém sabia o que fazer. As pessoa gritavam, tossiam por causa da fumaça. Houve pânico. Só dava para fugir pela janela, mas acabei caindo ao tentar alcançar a escada colocada pelos próprios funcionários, que não chegava ao segundo andar. Fraturei o tálus (principal osso de conexão entre o pé e a perna) e perdi o movimento do pé. Ele incha e sinto dores todos os dias. Quebrei o pé, mas poderia ter quebrado o pescoço e até morrer — lembra Mayze.

A enfermeira X., que também pulou pela janela no dia do incêndio, ficou com trauma de altura. Hoje, trabalha no primeiro andar de uma unidade:

— Não consigo nem ficar no Pedro II. Eu lembro onde o incêndio começou, a janela por onde pulei. O que eu vejo nos hospitais é que as saídas de emergência não são bem sinalizadas e os extintores não ficam acessíveis.

O Corpo de Bombeiros informou por e-mail que, apesar de os hospitais não terem os certificados, a interdição deles causaria “um dano irreparável à população, cuja vida depende do atendimento de saúde”.

PREFEITURA FARÁ LICITAÇÃO

O secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, disse que autorizou uma licitação, a ser realizada em até 90 dias, para a contratação das empresas que farão os projetos de sistemas de segurança contra incêndio para os hospitais. Só assim, eles poderão obter o certificado dos bombeiros. Já foram reservados R$ 8 milhões para o pagamento.

— A falta do certificado é um problema crônico das unidades. Queríamos que o Corpo de Bombeiros fizesse os projetos para os hospitais, como instituição pública que é, mas não houve negociação. Sendo assim, só restou ao município a opção de abrir a licitação para contratar as empresas, ligadas aos bombeiros, para tocarem os projetos básicos — disse o secretário, que vai pedir aos bombeiros uma nova vistoria para verificar, inclusive, o sumiço das mangueiras do Souza Aguiar.

Por nota, o Ministério da Saúde informou que os seis hospitais federais do Rio têm brigadas de incêndio. Segundo sua assessoria, o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia conta com um sistema de detecção e alarme de incêndio.

A Secretaria estadual de Saúde também disse que suas unidades têm brigadistas 24 horas por dia, além de iluminação de emergência e dispositivos de combate a incêndio, como extintores.